7.21.2008

INVESTIGAÇÃO CONTRA LABORATÓRIOS FARMACÊUTICOS

14/07/2008
Empresas são suspeitas de patrocinar ações para vender sem licitação; paciente admite interferência de indústria. A Polícia Civil de São Paulo retomou as investigações para apurar um suposto esquema em que laboratórios farmacêuticos são acusados de financiar ações judiciais de pacientes para garantir vendas emergenciais, com preços mais altos, ao Sistema Único de Saúde (SUS). São alvo das apurações as empresas Abbott, Novartis, Wyeth e o laboratório Serono, além da distribuidora de medicamentos Benatti, médicos e pacientes. Todos tiveram documentos apreendidos em suas sedes ou casas, após autorização, em dezembro do ano passado, da juíza do Departamento de Inquéritos Policiais Claudia Ribeiro. Ela entendeu que, apesar de as apurações terem começado por causa de denúncias anônimas, havia detalhes suficientes para a medida. A Wyeth havia obtido em abril deste ano um habeas corpus que, segundo advogados divulgaram à época, paralisaria as investigações. No entanto, antes disto, o delegado Eduardo Aoki, da 3ª Delegacia Seccional, na zona oeste de São Paulo, havia desmembrado as apurações em diferentes inquéritos, um para cada laboratório, o que lhe permitiu seguir com o caso. Na última semana, uma outra decisão favoreceu o trabalho da polícia. Questionado pela juíza, o desembargador Geraldo Pinheiro Franco, que havia concedido o habeas corpus à Wyeth, esclareceu que o recurso protege apenas dois funcionários da empresa, citados pelos advogados da farmacêutica. O delegado Aoki investiga possível tentativa dos laboratórios de burlar licitações com o esquema. Um dos principais depoimentos até o momento é de Dayse da Silva, ex-presidente do Grupo de Pacientes Artríticos de Jundiaí (Grupajun). Dayse, cuja casa foi alvo de buscas autorizadas pela Justiça, afirmou à polícia que o laboratório Abbott a teria auxiliado a ingressar com ação contra o governo do Estado para obter o medicamento Humira, contra artrite reumatóide, há três anos (leia texto nesta página). É a primeira vez que o Estado de São Paulo consegue algum tipo de prova formal para a suposta ligação entre as ações e os laboratórios, algo sugerido pelas autoridades nos últimos anos em debates públicos sobre processos judiciais e em peças de defesa. Em 2007, as ações com pedidos de medicamentos custaram R$ 400 milhões ao governo, o dobro do registrado em 2005. DENÚNCIA ANÔNIMA - As investigações da polícia começaram por causa de denúncias anônimas, que teriam sido feitas por supostos ex-funcionários da Wyeth. Eles enviaram carta ao Ministério da Saúde, que repassou o caso ao Ministério Público. O texto da denúncia descreve com detalhes um suposto esquema em que laboratórios concederiam descontos e prazos longos de pagamentos para que os distribuidores patrocinassem escritórios de advocacia. Esses advogados ingressariam com ações gratuitamente na Justiça em nome de pacientes carentes pedindo medicamentos não oferecidos pelo SUS. Os distribuidores, segundo a denúncia, utilizariam recursos de suposto caixa 2 (receitas omitidas dos órgãos de fiscalização) para o pagamento dos defensores. O texto diz ainda que funcionários públicos estariam sendo subornados para fazer parte do esquema. Eles canalizariam os pedidos de compra por ordem judicial, que não demandam licitação, direto para o distribuidor que financiou a ação. Já os médicos, de acordo com a denúncia, receberiam benefícios para indicar ao paciente os advogados. Os lucros dos laboratórios seriam garantidos pela compra direta e emergencial feita pelos governos por preços mais altos. A juíza Claudia Ribeiro autorizou em dezembro de 2007 buscas em escritórios da Wyeth, Serono, Abbott, Novartis e na distribuidora Benatti, após a polícia demonstrar por apurações que as empresas existiam em São Paulo e que havia compras sem licitação realizadas por ordens judiciais. Além disso, foram vasculhadas a casa de Dayse e a de uma médica, que a reportagem não conseguiu localizar. O mandado de busca só não foi cumprido no endereço que seria da Serono porque não era o do laboratório. Advogados também são investigados, mas a polícia ainda não tomou providência contra eles. Um funcionário de uma das empresas chegou a ser preso em flagrante por portar arma sem registro. Quatro armas em situação irregular foram encontradas em uma farmacêutica. Procurados na semana passada, os laboratórios não se manifestaram sobre as investigações (mais informações nesta página). Todos negam o envolvimento em irregularidades, assim como a distribuidora Benatti. "Aguardaremos e provaremos inocência", disse a advogada Vânia Mota "Não podia abrir mão'', diz paciente. EX-PRESIDENTE DE ENTIDADE CONFIRMA QUE FOI PROCURADA POR INDÚSTRIA - Fabiane Leite - Bordar e dar algumas voltas pela cidade são as poucas atividades que a artesã Dayse da Silva mantém hoje, depois de perder o emprego, em que ocupava uma vaga para pessoas portadoras de deficiência, e enquanto ainda dribla a doença que ela tem desde os 5 anos de idade. Ex-dirigente do Grupo de Pacientes Artríticos de Jundiaí (a 60 km de São Paulo), Dayse, de 39 anos, foi uma das primeiras a receber, há três anos, uma droga de nova geração que promete melhorar a vida de portadores de artrite reumatóide juvenil, diminuindo os "ataques" do sistema imunológico sobre as articulações. "Fui uma das primeiras que deu entrada na Justiça para conseguir o remédio", diz ela, lembrando que o medicamento não estava disponível no Sistema Único de Saúde (SUS). Por trás da vitória, no entanto, estaria um suposto esquema de laboratórios farmacêuticos que levou Dayse a ter sua casa vasculhada pela polícia em dezembro do ano passado e em seguida a confirmar, em depoimento, as informações. Segundo a artesã disse à polícia, seu médico em São Paulo, em quem confia, disse naquela época que a Abbott daria uma ajuda e se encarregaria de ação na Justiça para que ela obtivesse a droga Humira. O custo do medicamento era avaliado em R$ 7 mil mensais. Assim, a paciente recebeu os documentos para dar entrada em um programa de acesso especial ao Humira. Em outubro de 2005, passou a receber o remédio da Secretaria de Estado da Saúde. "Alguém do departamento jurídico me ligava pedindo exames e uma série de relatórios. O laboratório me ofereceu ajuda e não me cobrou nada por isso", disse Dayse em entrevista ao Estado. "Se alguém ganhou, é entre esta pessoa e o laboratório. Eles são peixe grande, eu sou peixe pequeno. Eles que se entendam. Eu não podia abrir mão (do medicamento)", diz Dayse, que afirma ter melhorado após passar a utilizar o remédio. Ela nega ter permitido que a empresa influenciasse os trabalhos do grupo de pacientes. Dayse citou seu médico no depoimento, mas ele não foi ouvido pela polícia. Procurado pelo Estado, o médico disse estar surpreso, pediu para não ter o nome divulgado e destacou que a prescrição foi técnica. "Apenas prescrevi o que era mais adequado para a paciente. "ELO COM A INDÚSTRIA É UMA EXCEÇÃO'' - Entrevista - Mário Scheffer: autor de estudos sobre ações judiciais; consultor diz que falta de regras para incorporação de novos remédios ao SUS impulsiona as disputas judiciais. Responsável por análises sobre demandas judiciais por medicamentos, uma delas para o Programa Nacional de DST e Aids, Mário Scheffer estudou a incorporação de novos remédios contra a aids em recente doutorado defendido na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Em entrevista ao Estado, ele afirma que as distorções em processos judiciais para obter medicamentos, apesar de existirem, são uma exceção no sistema, defendendo o direito dos pacientes de buscar a Justiça - seja acionando as responsabilidades dos governos ou planos de saúde. Um paciente confirmou à polícia ter obtido financiamento de um laboratório para conseguir medicamento que não era ofertado pelo SUS. Qual sua avaliação? Tendo a achar que essas distorções são exceção, elas existem, mas são exceção. Os gestores têm usado isso com má-fé, contra um instrumento legítimo que foi essencial, por exemplo, para garantir o acesso de pacientes a drogas contra a aids. O que impulsiona essas demandas judiciais por medicamentos? Os fatores mais relevantes são a demora na incorporação de novos remédios pelo Sistema Único de Saúde, o contato de laboratório com prescritores, a mobilização social, pacientes com mais informações e problemas na formação dos médicos. Hoje a formação (desses profissionais) é ditada pela indústria farmacêutica. Mas, na verdade, na imensa maioria dos casos que estudamos, as ações são propostas por advogados de ONGs (organizações não-governamentais), sem envolvimento com os laboratórios. Eu me preocupo porque não se pode atribuir sempre essa possibilidade de fraude à judicialização. Qual seria a saída? O País precisa regular melhor a incorporação de medicamentos desde os ensaios clínicos, verificar se eles realmente contribuem ou se servem apenas para ambientar uma droga. Depois são necessários consensos sobre as medicações, realizados por especialistas sem conflito de interesse. E também tem de ser regulamentada a relação entre os prescritores e laboratórios. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) deu alguns passos, mas ainda não há parâmetros para uma relação mais ética. Outro furo é a capacitação. Não dá para toda a atualização dos médicos ser deixada para a indústria. Muitos prescrevem não porque receberam alguma coisa, tiveram benefício, mas porque realmente acham que estão prescrevendo o melhor medicamento. Para os governos, os custos as drogas são cada vez mais altos... Como as pessoas cada vez vivem mais, os custos são mais altos. É preciso lançar mão de outras possibilidades, flexibilizar a legislação, garantir a produção nacional. É muito simplismo e oportunismo os governos atacarem as ações judiciais. É muito mais fácil fazer isto do que responder a tarefas muito mais espinhosas. Quem é: Mário Scheffer - É diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde e da organização não-governamental Pela Vidda. É consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, do Conselho Regional de Medicina de São Paulo e do Instituto de Defesa do Consumidor. - Fabiane Leite -
Fonte: Estado de São Paulo

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