6.13.2012

TRANSTORNO BIPOLAR

 entre a euforia e a depressão

A jornalista Marina W. escreveu um livro para relatar sua vida com o transtorno bipolar. Foto: Divulgação A jornalista Marina W. escreveu um livro para relatar sua vida com o transtorno bipolar
Baseada em sua história pessoal, a escritora e jornalista Marina W., pseudônimo de Maria Adriana Rezende, faz um relato sobre os altos e baixos na vida dos que sofrem de transtorno bipolar no livro Não sou uma só - Diário de uma bipolar.

"Resolvi escrever este livro porque eu tinha muita vergonha da minha doença, tinha medo de que as pessoas achassem que eu era louca. Agora, quero que as pessoas comecem a encarar o transtorno bipolar como uma doença comum", diz Marina.

O transtorno bipolar é uma doença caracterizada pela ocorrência de episódios de euforia e depressão. Em geral, os pacientes com este transtorno alternam períodos de muita excitação com períodos de depressão e normalidade.

De acordo com Flávio Kapczinski, psiquiatra e coordenador do programa do transtorno bipolar do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, esse problema afeta cerca de 1% da população mundial em sua forma mais grave e 4% em sua forma mais atenuada.

Usualmente, a doença se manifesta por volta dos 20 anos. Com forte herança genética, o transtorno atinge igualmente pessoas do sexo masculino e feminino, ao contrário da depressão, que é muito mais comum em mulheres.

Por ser confundido como um paciente depressivo, a pessoa que apresenta o transtorno leva cerca de oito anos para receber um diagnóstico correto e, muitas vezes, recebe um tratamento errado, à base de calmantes e antidepressivos.

"O tratamento ideal para o paciente bipolar é feito com substâncias chamadas de estabilizadores de humor e que devem ser mantidos durante toda a vida do paciente. O uso de atindepressivos pode até agravar o problema", afirma Kapczinski.

Identificar o transtorno bipolar precocemente e iniciar um tratamento adequado é imprescindível para que o paciente tenha mais qualidade de vida e sofra menos com os efeitos da doença.

"Se não tratado, o transtorno bipolar pode afetar os relacionamentos do paciente, diminuir a capacidade de trabalho e de estudo e gerar problemas familiares. Além disso, 40% dos pacientes desenvolvem problemas com drogas e álcool e a taxa de suicídio é bastante alta", alerta o psiquiatra.

Marina relata que sofreu muito até descobrir seu problema. Evitava os amigos e prejudicou a educação de seus filhos. "A pior perda que tive foi o contato com meus filhos. Prejudiquei o convívio com eles porque me ausentava muito", conta a jornalista.

Não sou uma só - Diário de uma bipolar ainda conta com um texto do jornalista Pedro Bial que acredita que a leitura "vai ajudar muita gente a se libertar de suas prisões solitárias e de sua agonia inconfessa."

Serviço:
Não sou uma só - Diário de uma bipolar
Autora: Marina W.

 NÃO SOU UMA SÓ
O diário de uma bipolar
O maior pecado? Abandonar-se.
Madre Teresa de Calcutá
É como se minha vida fosse magicamente dirigida por duas correntes elétricas: contente positiva e desesperançada negativa — a que estiver em ação no momento domina minha vida, inunda-a. Agora estou inundada de desespero, quase histeria, como se estivesse sufocando. Como se uma grande coruja musculosa estivesse sentada em meu peito.
Sylvia Plath
De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
Adélia Prado
Notou que os ladrilhos formavam pequenos desenhos no chão da cozinha, como flores desmaiadas. Usava um vestido de algodão, com pequenas riscas. Os cabelos estavam presos por minúsculas travessas de tartaruga e o batom era cor-de-rosa claro. Sorriu. Era bom estar ali, ao lado dos seus três amigos: o garagista, a manicure e a dona-de-casa. Entraram no restaurante e ela se dirigiu ao proprietário, um português de bigodes imensos.
— Se eu der um pequeno show para seus clientes, posso jantar aqui com meus amigos, como cortesia?
Olhou ao redor. Era o melhor restaurante da cidade. Um salão grande com mesas cobertas por toalhas xadrez e pequenos enfeites no centro.
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— Que tipo de show? Ontem esteve aqui um rapaz fazendo discursos.
— Vou mostrar para o senhor. Veja.
Com os braços encostados nas paredes do pequeno corredor, deu um impulso que fez com que tirasse os pés do chão e alguns segundos depois estava sobrevoando a sala. Seus amigos estavam rindo e batendo palmas. Ela sabia que eles nunca haviam experimentado tanta felicidade. Puxou um a um pelas mãos, e logo todos estavam voando. Como num passe de mágica, agora voavam sobre um enorme lago, dando vôos rasantes na água.
— Podem voar! Não tenham medo! Isto é um sonho!
De repente lembrei que tinha de voltar. Eram oito da manhã e precisava tomar os remédios. Aquela era a pior hora do dia, porque significava recomeçar. Escovei os dentes sem olhar para o espelho e voltei pra cama, me cobrindo inteira com o edredom. Pontualmente a empregada levava leite com chocolate que eu bebia envergonhada. “Estou com depressão, falta um componente no meu cérebro”, eu explicava. Ela dizia que eram os vultos, que o quarto dos fundos, por ter se transformado num depósito de coisas que ninguém queria mais, estava cheio de espíritos ruins. Sabia que não era isso, mas gostava que ela
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pensasse assim. De vez em quando trazia uma espécie de azeite sagrado que passava sobre minha testa, enquanto pronunciava palavras que dizia ser a língua dos anjos. Os dias se arrastavam, meu marido estava no trabalho, meus filhos no colégio ou jogando videogame. Todos tocavam suas vidas, independentemente de mim. A dor da depressão não pode ser compartilhada.
Na primeira consulta, dr. Olavo, meu psiquiatra, perguntou se algum dos meus dois médicos anteriores tinha dito que eu era bipolar. Respondi que ambos, embora tenham demorado muito a chegar a esta conclusão. Ele disse que os psiquiatras em geral demoram a dar este diagnóstico, como fica comprovado em vários estudos.
A maior parte das pessoas que têm depressões é tratada como se fosse unipolar, quando na verdade não é. Isto faz um estrago enorme, o mesmo que qualquer outro diagnóstico errado, como pneumonia ser tratada como uma gripe comum. Normalmente demora-se, em média, dez anos para que o bipolar seja diagnosticado de maneira correta. Comigo também foi assim.
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Ele precisava saber se eu tinha tido um quadro de euforia, para ver se a doença tinha dois pólos. Então contei sobre uma viagem que fiz a Nova York quando era bem jovem, e também disse que, certa época, eu chegava em casa todos os dias cheia de sacolas de lojas caríssimas, nas quais normalmente nunca ousaria entrar. Foram informações suficientes para precisar o diagnóstico: eu era mesmo bipolar.
Gastos compulsivos são uma característica marcante da doença. Além disso, quando a euforia aparece, o bipolar se torna um aventureiro. Por isso, quando olho pra trás, nunca sei se alguns perigos que enfrentei, e foram muitos, tinham sido ocasionados pelo meu jeito de olhar a vida ou pela euforia que tomou conta dela. É muito difícil separar o que faz parte de mim e o que faz parte da doença. O espírito de aventura é um temperamento pré-bipolar.
A euforia faz parte da doença, é o outro lado da moeda, e o que ocorre quando uma pessoa está maníaca deve ser visto como um descontrole mental. É o oposto da depressão. A tristeza cede lugar a uma felicidade febril. Uma pessoa em estado de mania é capaz de comprar três carros em apenas um dia, como o jogador Robert, do América, que em fevereiro de 2006 declarou que era bipoNão
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lar, em uma entrevista para o jornal O Globo. O jornalista colocou o nome antigo da doença, maníaco-depressivo. Quando se trata de termos médicos, os repórteres sempre cometem deslizes. A expressão maníaco-depressivo já deveria ter ido para o espaço, mas é muito forte. Não é errado, ainda existe esse termo, porém os jornalistas, em geral, desconhecem a troca de nomes.
Como já mencionei, gastos execessivos e normalmente inúteis são características regulares do transtorno bipolar. Carrie Fischer — a princesa Leia de Guerra nas estrelas — relata em seu livro The Best Awful que, aos 14 anos, começou a achar que as coisas estavam meio esquisitas em casa quando seu pai, Eddie Fischer, a chamou para ver as roupas que havia comprado em Hong Kong. Quando abriu o armário, mostrou 175 ternos de cores diferentes, passando por laranja e verde limão.
A psiquiatra Kay Redfield Jamison, autora de Uma mente inquieta, comprava dezenas de livros da coleção francesa Penguin, para formar uma “comunidade de pingüins” na sua estante. E também kits e mais kits para picadas de cobra, já que se imaginava ungida por Deus para alertar o mundo sobre o ataque de serpentes assassinas que aconteceria em breve — isto é psicose.
Outro exemplo de psicose na bipolaridade: Mary Pat Gleason levou para o palco sua doença, com a peça
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Stopping Traffic [Parando o trânsito], encenada no Vineyard Theater, em Manhattan. A atriz fez mais de cem filmes. Durante as filmagens de O óleo de Lorenzo via uma luz queimando dentro dos olhos de Nick Nolte. Sua primeira experiência com a doença foi quando, na fase maníaca, imaginou que durante cinco dias um homem suicida estava no parapeito de sua janela — e que depois acabou desaparecendo como uma luz. Um crítico americano elogiou a mensagem da peça (a necessidade de haver abertura em relação a doenças mentais), além de considerá-la cativante e divertida.
O que aconteceu na minha viagem a Nova York, aos 21 anos, poderia ser chamado de euforia? Não sei se esse episódio não teria acontecido se eu não estivesse com problema nas famosas sinapses.
O que se conhece hoje do cérebro é que ele funciona através de comunicação e, portanto, através de uma linguagem. Quanto mais as células se comunicam, mais o cérebro vai render. Quando se fala em linguagem, está se falando de um aglomerado de células, empilhadas, formando um tecido.
A sinapse está ligada aos neurônios, só existe na célula nervosa. E o interessante da célula nervosa é que uma
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não toca na outra. Ela quase toca na outra, quase encosta. A sinapse é a ligação entre duas células que, através de uma gigantesca conversa química, vai reger, literalmente, de 5 a 7 bilhões de células. Uma envia informação e outra recebe, e isso se dá por meio desse quase contato.
Talvez a alma, que o homem procura há milênios, esteja justamente nesse quase toque. E, quem sabe, a sinapse possa explicar os diversos dons artísticos, como compor, pintar, escrever. Além de ser responsável por sentimentos religiosos e místicos. A sinapse é uma coisa bem romântica.
A sinapse do bipolar é uma sinapse alterada e os sintomas se manifestam a partir dela. Hoje, o que se acredita que exista no transtorno bipolar é um conjunto de genes envolvidos, e não apenas um, como se pensava. Não seriam menos de seis nem mais de vinte genes. Sempre se tentou simplificar, como se todas as doenças fossem determinadas por apenas um gene, como a hemofilia, por exemplo.
No final dos anos 1970, eu estava sozinha, sem dinheiro, e faltavam cinco dias para retornar ao Brasil. Eu era ingênua para a idade, não burra, mas meio inocente. Minha mãe nunca me deixaria viajar sozinha pra Nova York. Além de ela ser superprotetora, a cidade americana
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era a primeira no ranking das mais violentas do mundo. Estava indo para a Europa, com um grupo, e a agência de viagens oferecia um opcional por um preço bem baixo. Uma família que já tinha viajado comigo em outra ocasião estava indo pra lá, então pude ir também. Era um casal com filhos da minha idade, e dava uma sensação de segurança. Pra minha mãe, no caso.
Na Europa, me distanciei do grupo a fim de viver minhas próprias experiências, como andar sem rumo ou tomar um café sozinha em Paris. Na cafeteria, um rapaz perguntou se poderia se sentar à mesa comigo. Disse oui, meu vocabulário só permitia isso. Poderia também dizer Je t’aime, mas não era o caso. Ele ficou horas falando coisas que não entendi. Tentávamos nos comunicar usando um pouco de inglês, o que não facilitava muito a conversa. Nunca soube o que tanto conversamos. Se chamava Patrick e, quando nos despedimos, me deu uma medalhinha de presente.
Em Viena minha grana acabou. Eu era muito orgulhosa para pedir dinheiro emprestado. Certa noite, morta de fome, sem ter comido absolutamente nada o dia inteiro, juntei todas as minhas moedas e fui à lanchonete mais próxima. Coloquei o dinheiro em cima do balcão, e a garçonete começou a separar os xelins das
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moedas francesas, inglesas e de outros países por onde eu havia passado. Sobraram poucas e, olhando o cardápio de palavras incompreensíveis, chegamos à conclusão de que havia uma coisa que eu poderia comprar: um saquinho de batatas fritas.
Estavam frias e oleosas. Carreguei as batatinhas para o hotel como se fossem jóias. Assim que entrei no hall, onde um tapete vermelho começava nos degraus de mármore da entrada e ia até o elevador, tropecei, e elas voaram para todos os lados. Ignorei o gerente e os outros funcionários e fui catando uma a uma, voltando para o meu quarto, onde lia Entre quatro paredes e escrevia diários. Todo o grupo tinha se programado para assistir aos espetáculos de valsa e conhecer a maior montanha-russa da Europa. Fiquei sozinha com Sartre. Ainda não sabia que o inferno somos nós.
No ônibus, completamente eufórica, improvisei um leilão e vendi grande parte das compras que fiz durante a viagem. Minha mãe mandou dinheiro para a casa do filho de uma amiga, em Roma, e, quando fui buscar, vi que o lugar parecia uma comunidade, que se parecia comigo. Ele insistiu que eu ficasse por ali, e não fosse ao Vaticano: “Que careta!”. Mas peguei os dólares e fui embora. Passamos por outras cidades e outros países, e
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meu dinheiro ia sumindo como cubos de gelo na palma da minha mão.
Parênteses: eu estava eufórica. Era muito tímida para fazer um leilão, e comportada demais para querer ficar naquela comunidade. Mas não se pode confundir a delícia de ter 21 anos e estar vivendo uma aventura com a doença. Hipomania é euforia, porém mais branda. Se eu estivesse em estado de mania, ficaria com certeza com os rapazes em Roma.
Mas é bom que se esclareça que se uma pessoa optar em ficar com os descolados, e ainda cometer uma variedade de excessos, não quer dizer que ela seja bipolar. Claro que não. O espírito aventureiro, a atração por adrenalina, a ousadia são temperamentos que podem estar ligados ao transtorno ou não. Para formar um quadro de bipolaridade, é preciso que exista a depressão. A depressão é o avesso da euforia. No transtorno bipolar os dois pólos devem estar presentes, para que a pessoa possa ser diagnosticada assim.
No caminho para Nova York, me desentendi com a tal família, e fomos cada um para um lado. Tínhamos mesmo que nos separar. Eles iam se hospedar no Hilton, enquanto eu não fazia a menor idéia do que me esperava.
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Nem sei quem me deu a dica do Taft, hotel bacana de Nova York, com diárias bem abaixo do normal. No quarto havia uma cama cheia de travesseiros, lençóis e cobertores gostosos. O chuveiro era quente, tinha ar-condicionado, uma televisão grande e cinco pega-ladrões na porta. Fiz os cálculos e vi que tinha dinheiro para pagar uma diária e meia. Fora isso, restavam uns trocados. Supondo que a diária custasse cem dólares, sobravam cinqüenta. Entrei num supermercado e gastei boa parte em batons. É uma atitude estranha. Faz parte da mania sair comprando, mesmo sem ter dinheiro.
Mas não estava preocupada. Passaria uma noite no hotel e, no dia seguinte, quando vencesse a diária, iria até a Varig para antecipar minha volta ao Brasil. Tudo muito simples. Entrar no escritório da Varig foi um grande conforto. Eram todos brasileiros e me senti em casa. Porém me informaram que eu poderia adiar minha viagem por tempo indeterminado, mas que antecipá-la era impossível. Aí, sim, fiquei nervosa.
Insisti o máximo que pude, expliquei minha situa-ção — estava sem dinheiro e não tinha onde ficar. Nada adiantou, era assim que funcionava. Meu desespero deve ter chamado a atenção das pessoas que aguardavam nas
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cadeiras azuis, grudadas umas nas outras, como as dos aeroportos. Sugeri ir em pé no corredor, sentada no chão, ou na cabine do piloto. Afinal, era uma emergência. Saí do guichê sem saber o que fazer e analisando a hipótese de ficar o resto da semana sentada no aeroporto, aguardando o dia do meu embarque, ou bater na porta de uma igreja que, por questões óbvias, eu imaginava que me acolheria. Claro que essa opção do aeroporto é inviável, ninguém pode permanecer lá dentro quando fecham as portas, a não ser que você seja o Tom Hanks — ou o cara que serviu de inspiração para o filme etc. etc.
Voltei para o hotel para pegar minhas malas na portaria. Era noite e ouvi alguém assobiando. Achei que não era pra mim, óbvio. Mas, com a insistência, olhei pra trás e dois homens se aproximaram.
— Você poderia me fazer um favor? — perguntou um deles.
— ...
— Você não está voltando para o Rio, sábado?
“Como eles poderiam saber?”
— Vimos você na Varig.
“Ah.”
— Que favor?
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Deus é Cassiano Gabus Mendes, as coincidências de fato existem. Eu não conhecia a incrível Teoria dos Seis Graus, que me faria compreender melhor o que se seguiu.
A Teoria dos Seis Graus foi criada por Stanley Milgram, em 1967. Ele juntou alguns voluntários e fez um estudo para provar que todos ali poderiam conhecer todo mundo através de conexões com outras pessoas. Queria provar que apenas seis pessoas nos separam de qualquer outra do planeta. Ele se inspirou em Marconi, inventor do telégrafo sem fio, que afirmava que, se o mundo estivesse interligado pela sua invenção, qualquer pessoa podia encontrar outra, numa distância de 5,83 graus. Milgram arredondou. Acredito nisso, sempre achei que todas as pessoas do planeta estão interligadas.
— Você poderia entregar uma encomenda pra mim?
— Que encomenda?
— Um secador.
— Claro que posso.
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Eu faço essa linha Amélie Poulain. Ele era cabelei-reiro e, mais tarde, saberia que namorava uma loura escultural.
— Meu amigo pode ligar pra você e buscar na sua casa. Você mora onde?
O bairro era o mesmo.
— Que rua? — perguntei.
A rua era a mesma.
— Que número?
O número do prédio também era o mesmo.
— Que coisa! Qual o número do apartamento?
Se ele falasse o número do meu apartamento, ia virar Ionesco. Mas falou o número da minha vizinha de porta. A encomenda era para o irmão dela.
Achei que poderia confiar nele, pois tínhamos um elo em comum. Uma teoria furada, eu sei. Mas era inocente e tal. O diálogo se deu com o mais velho, que deveria ter uns trinta e poucos anos, o outro tinha 29, saberia depois. O mais velho era meio grande e um pouco gordo. O outro se chamava Gabriel, carregava uma mochila verde-camuflada e uma mala que não era dele. Não falou nada em momento algum. O que conversava comigo se chamava Ricardo, e carregava duas malas grandes. Estavam se mudando de um hotel, onde dividiam um quarto
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por total falta de grana, para um apartamento no Queens. Achei bacana um cara só ter uma mochila.
— Você não tem pra onde ir, o que vai fazer?
— Não tenho idéia, acho que vou dormir em alguma igreja.
— Por que você não vem morar com a gente?
Eu não era uma garota descolada. Não podia ficarnum apartamento com dois caras desconhecidos. Agradeci meio rindo, como se fosse uma gracinha. Mas ele refez o convite e, quando notei que era sério, vi o absurdo da questão.
— Imagina, eu nem conheço vocês.
Ao contrário de Gabriel, um cosmopolita, Ricardo era um brasileiro típico. Tinha um conservadorismo clássico e achava meu argumento extremamente válido.
— Pode ficar tranqüila, nós vamos te respeitar — disse.
— Não somos tarados. — Gabriel se manifestou pela primeira vez e, de certo modo, foi antipático.
— Então faz o seguinte — prosseguiu Ricardo. — Vamos lá em casa, a gente deixa as malas, e saímos para comer uma pizza. Você deve estar com fome.
De fato estava, e com muita. Tinha gastado mais um pouco de dinheiro almoçando num restaurante braMarina
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sileiro na rua 46. Fiz amizade com um garçom cearense, que tinha colocado o resto da comida numa quentinha para mim. Quentinha que, nessa altura, já estava gelada no hotel.
Que problema. E se me atacassem no apartamento? Eram dois estranhos, afinal, poderia tranqüilamente acontecer. Pensei nos prós e contras, Ricardo parecia tão simpático, e a imagem da mussarela borbulhando me deixava sem muita escolha. Concordei. O segundo gesto antipático de Gabriel foi jogar uma das alças da mala na minha direção, para que eu pudesse ajudá-lo a carregar.
Levamos a bagagem até o metrô. Eu e o cabeleireiro ficamos conversando sobre a Cláudia Lessin, a garota que havia sido recentemente assassinada no Rio, de maneira brutal, manchete em todos os jornais.
— Ela procurou — resumiu Ricardo.
Fiquei indignada. Que absurdo era aquele?
— Não fala besteira — resmungou Gabriel. E minha antipatia por ele diminuiu.
Entrei no apartamento apreensiva. Deviam ser umas onze da noite quando largamos as malas no chão. Ricardo caiu duro em cima do colchonete.
— Você se importa de ir só com o Gabriel? Estou pregado.
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O cara era hostil, sair pra comer uma pizza que ele próprio pagaria era uma situação embaraçosa. “OK”, respondi.
Fomos a uma trattoria, onde conversamos e acabamos nos divertindo muito. Ficamos horas. Depois me levou a um bar punk, onde as garçonetes tinham cabelos verdes e usavam flechas espetadas na cabeça. Fiquei deslumbrada, nunca tinha visto nada parecido. Muitos anos mais tarde, Rita Lee apareceria na televisão com a tal flecha de borracha, dando a impressão de que está atravessada na cabeça da pessoa. Era um lugar pequeno e divertido, cheio de músicas e mulheres equilibrando bandejas de um lado para o outro. No bar, Gabriel pediu várias cervejas. Só dei um primeiro gole e deixei de lado. Gabriel bebeu umas oito, e cada vez que pedia uma pra ele, pedia outra pra mim. Então de um lado da mesa havia oito copos cheios e do outro, oito copos vazios. Adoro essa imagem, achei superelegante.
Não sei se influenciado pela bebida, ele começou a contar sua vida. Repórter de um conceituado jornal paulista, tinha largado tudo para viajar. Foi açougueiro e lanterninha em Paris, cozinheiro na Itália, garçom na Holanda e catador de uvas em Roraima. Aquilo foi me encantando de uma maneira incrível. Acho que qualquer mulher ficaria encantada.
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— Hoje eu vi uma coisa, mas tenho vergonha de contar — falei.
— Conta...
— Fico sem graça...
— Pode contar.
— Hoje na rua vi um garoto de programa.
Dãn. A frase parece ainda mais idiota nos dias de hoje, mas na época eu só tinha visto tal coisa em Midnight Cowboy.
Ele riu. E foi um pouco depois que ele disse, olhando pra mim:
— Estou apaixonado por você.
Ele também tinha sido garoto de programa em Nova York. Caramba.
Durante a minha vida, alguns homens se encantaram por mim pelo mesmo motivo: minha espontaneidade e um certo ar inocente. Além disso, na bipolaridade existem alguns elementos fascinantes.
Eu não sabia o que dizer, não estava apaixonada, mas encantada por ele, suas histórias, o país estranho e a madrugada alta.
Saímos de lá por volta das quatro da manhã. Chegamos a uma pracinha minúscula, onde só havia uma
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pequena árvore e um banco de madeira. No trajeto, senti medo algumas vezes, quando alguns sem-tetos mexiam com a gente. Toda hora aparecia algum maluco. Ele me abraçava para me proteger, e eu dizia “Ei, tenho namorado!”, brincando, e cada vez mais com menos convicção.
Sentamos na pracinha, eu não deixava ele me beijar nem nada. Uma cena que ficou gravada pra sempre na minha memória: quando olhei pra trás vi um enorme outdoor do filme Drácula, de John Badham. Senti uma mistura de adrenalina e excitação. O que eu fazia com aquele homem ali, no centro de Manhattan, num lugar onde eu nem conhecia a língua, com aquela imagem enorme de um vampiro atrás de mim?
Não sabia, mas o inesperado era irresistível, e minha confiança nele era total. Agora, enquanto escrevo tudo que passou, vejo que eu era infinitamente mais inocente do que imaginava.
O dia clareou e algumas pessoas já circulavam pelas ruas.
— Preciso deitar um pouco.
— ...
— Tenho de trabalhar às oito e preciso dormir pelo menos umas duas horas.
— ...
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— Você se importaria se eu dormisse um pouco no seu hotel?
Não esperava mesmo por aquilo. Voltei à realidade rapidamente. Eu tinha um namorado, não conhecia aquele cara e ele estava me pedindo uma coisa com a qual eu não sabia lidar.
— Sério, só pra eu deitar um pouco.
Eu confiava nele. Na euforia você é capaz de acreditar no pior dos bandidos.
— Está bem.
O Taft ficava bem perto e, quando chegamos ao meu quarto, ele pediu para tomar um banho. Banho?
— Eu só te peço uma coisa, Gabriel, que você saia do banheiro vestido.
Ele riu, eu não.
Enquanto estava no chuveiro, eu ia me dando conta do que estava fazendo: Cláudia Lessin tinha morrido.
Gabriel abriu a porta e apareceu com uma toalha branca enrolada na cintura. Gelei, ele estava sendo desleal comigo e não merecia mais a minha confiança. Então repentinamente arrancou a toalha e vi que le estava de calça lee. Não é preciso dizer que me apaixonei no mesmo instante.
Ele se deitou e coloquei sobre seus olhos uma compressa Yves Saint-Laurent, que havia comprado na
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passagem por Paris. Era um homem que desprezava a burguesia, mas acabou cedendo àquela espécie de conforto. Eu tinha tomado um banho e colocado um jeans com uma camiseta do Mickey, recém-adquirida. Mickey, veja você.
Fico bonita após tomar banho, com o cabelo escorrendo. Peguei os três travesseiros que sobravam e fiz um murinho entre nós dois, como num filme com Doris Day. Ele ria e dizia:
— Não posso acreditar num lance desses.
Para mim, estávamos apaixonados.
Logo precisou ir para o trabalho. Era vendedor de uma loja especializada em bugigangas para turistas. “Otários”, era assim que ele falava. Insistiu para que eu fosse morar com eles, eu disse que não, mas já estava certa que iria. Tomamos café preto com torradas no McDonald’s. Gabriel então pediu que eu não fosse com ele até a loja. Ia chegar atrasado, seu chefe era esquentado e poderia perceber que ele tinha se atrasado porque estávamos juntos.
Porém, pouco depois que Gabriel subiu a escada velha de madeira que ia dar na loja, subi também. Como o dono estava lá, ele não podia falar nada, nem reclamar. Comprei um rádio em formato de lata de Coca-Cola e outras bobagens, que ele vendeu chateado, enquanto eu
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me divertia. Colocou tudo numa sacolona, desaprovando as compras — eram coisas vagabundas e para otários. Seu chefe era gordo e parecia um mafioso. Agradeci e fui embora. E assim acabaram os últimos centavos. Na rua, flutuava a meio metro do chão. Meg Ryan não estava à minha altura.
De repente alguém me abraçou por trás, e um pouco de sangue manchou minha camiseta. Levei um susto horrível. Mas era ele. Desceu correndo as escadas e sua mão tinha esbarrado num prego no corrimão.
— Vem morar com a gente — falou.
“Sim, sim, sim!”, eu concordava, eufórica. Por dentro.
— Vou pensar — respondi. Mulheres.
O edifício era igual ao dos filmes, poucos andares, tijolinhos aparentes e escadas de incêndio cruzando as janelas. Fomos morar no térreo. Tiraram par ou ímpar para saber quem dormiria no único quarto. O cabeleireiro ganhou e ficamos na sala, onde só havia um saco de dormir.
Todas as noites, Gabriel preparava pratos maravilhosos, e meu predileto era arroz francês. A hora do jantar era sempre o momento quando conversávamos sobre o que tinha acontecido durante o dia. Minha incapacidade de me fazer entender ao tentar comprar uma cortina para

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