2.04.2013

Os mil guerreiros da ABI

Num certo momento, olhei as pessoas em volta, aquele amálgama colorido, quase mil pessoas participando de um evento político supra-partidário, pensando, acreditando, agindo e votando na contramão da mídia. Alguma coisa de muito grande acontecia ali. Apesar do tema do evento ser a denúncia de uma terrível injustiça praticada não apenas contra quadros importantes da esquerda, não apenas contra o mais importante partido do campo popular, não apenas contra a Constituição, mas contra o centro vital da democracia, que é a confiança dos cidadãos em seu regime político, apesar disso, não havia ódio. Nem sequer tensão. Havia alegria. Não a doce e irresponsável alegria de uma noite de carnaval, mas a alegria que nasce do alívio de constatar que não estamos sós. A alegria que nasce da força inacreditável de estarmos unidos contra um inimigo em comum.

E qual é o inimigo? O velho golpismo de sempre. O velho golpismo udenóide, midiático e truculento de sempre. Que perde nas urnas, mas sempre dá um jeito de aplicar um golpe contra a democracia. E que conseguiu cooptar, seduzir, atemorizar, através de uma violentíssima campanha midiática, os ministros do Supremo Tribunal Federal.

Na mesa de debate, os oradores foram os seguintes, por ordem de suas falas:

Raimundo Pereira – Jornalista, editor da revista Retrato do Brasil
Altamiro Borges – Jornalista, coordenador do Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé
Hildegard Angel – Jornalista e blogueira
Adriano Pilatti – Advogado, professor da PUC-Rio
José Dirceu (convidado especial) – Ex-ministro e dirigente nacional do PT
Mediadora: Fernanda Carísio – Integrante da Executiva do PT-RJ e ex-presidente do Sindicato dos Bancários do Rio

Raimundo Pereira lembrou que o PT e os réus políticos do mensalão não estavam sendo acusados pelo crime, efetivamente cometido, de caixa 2 na campanha eleitoral de 2002. O PT admitiu ter feito caixa 2. Sobre esse crime, havia provas e uma confissão do próprio PT. Mas a acusação não era essa, e sim de compra de votos com uso de dinheiro público. Esse é o ponto crucial. Quando se fala que “o PT errou”, e que o PT deveria fazer uma autocrítica, não se pode esquecer disso. O partido não pode fazer uma autocrítica de algo que não fez. Não houve compra de votos, e não houve uso de dinheiro público. O STF agiu de maneira irresponsável quando tratou do tema Visanet. O STF acusou o PT, através de Henrique Pizzolatto, de ter desviado recursos do Visanet. Pereira lembrou à platéia, contudo, que há farta documentação mostrando que os serviços foram prestados. E os fundos do Visanet são privados. A revista Retrato do Brasil, editada por Pereira, traz extensa reportagem sobre esse erro capital do STF. A grande mídia, em sua sede de vingança, jamais se interessou em pesquisar o assunto. Pereira observou que ele e sua equipe vem examinando toda a documentação do julgamento da Ação Penal 470, e observou que os papeis encontram-se terrivelmente desorganizados, o que seria indício forte de que os juízes não os leram.

Altamiro Borges fez uma intervenção mais política. Começou fazendo um elogio à Executiva Nacional da CUT pela coragem de se envolver nesse debate, num momento em que um pragmatismo eleitoral rasteiro e de curto prazo, às vezes disfarçado de bom mocismo, pretende enterrar mais essa injustiça para debaixo do tapete, dizendo que é preciso “virar a página”.

Segundo Miro, um dos aspectos mais importantes por trás da injustiça perpetrada pelo STF é a questão da mídia e seu poder de pressionar e manipular a opinião pública. Ele mencionou recente artigo do professor Venício Lima sobre o debate em curso na União Europeia sobre regulamentação democrática da mídia. Exortou movimentos sociais, sindicatos, blogueiros e cidadãos em geral a pressionarem o governo e o congresso a tirarem o Brasil do atoleiro golpista-midiático em que se meteu. Não se trata de impor qualquer censura à imprensa. Ao contrário. Numa outra intervenção de Miro, em Brasília, ele observa como é importante valorizar a imprensa independente, que critica os governos, denuncia arbitrariedades, e faz denúncias de corrupção. O que deve ser combatido é o monopólio, cuja sombra tóxica asfixia a pluralidade, a diversidade e a liberdade de expressão.

A participação da jornalista Hildegard Angel representou o momento mais comovente do debate. Sempre muito emocionada, chorando às vezes, ela externou seu profundo sentimento de indignação e decepção contra ministros do Supremo que se vergaram aos holofotes, à vaidade, ao poder da mídia. Com uma voz suave, triste, constante, a madame elegantérrima, fina, representante da alta burguesia carioca, explicou que os ambientes que frequenta não partilham da sua opinião, que as pessoas que vão às festas em sua própria casa também não, mas que estas estão protegidas. Sua preocupação era com o povo brasileiro, fragilizado por séculos de pobreza e iniquidade social. Não usou essas palavras, mas disse, em suma, que sua preocupação era ver que, após vinte anos de democracia, voltava a sentir medo dos “gorilas”, os quais, desta vez, ao invés de fardas, usavam togas. O discurso completo de Angel pode ser lido aqui.

Adriano Pilatti, diretor do departamento de direito da PUC-Rio, fez uma longa e brilhante exposição sobre os erros jurídicos, morais e políticos do julgamento da Ação Penal 470. Princípios básicos não apenas da Constituição Federal Brasileira, mas dos direitos humanos consolidados há séculos, foram violados para satisfazer uma sanha vingativa. A presunção da inocência foi esquecida. A própria lógica foi sabotada. “Um juiz chegou a argumentar: não era crível que fulano agisse sozinho, o que prova que sicrano também participou” – uma argumentação que não se justificaria sequer na boca de um estudante de primeiro período é usada pela mais alta magistratura do Estado! Pilatti observou que o julgamento do mensalão representou um retrocesso político e cívico terrível, porque deseducou milhões de brasileiros. O ensino do Direito foi afetado, porque as maiores virtudes de quem se presta a estudar as leis e a forma como se devem aplicá-las, que são a prudência, a serenidade, a análise objetiva e desapaixonada dos fatos, foram esmagadas por um julgamento carregado de ódio político e preconceito ideológico, onde inclusive tentava-se o tempo inteiro silenciar, muitas vezes com brutalidade, a única voz destoante, a do ministro Lewandowski.

A teoria do domínio do fato, por sua vez, foi doentiamente manipulada para servir aos propósitos da acusação. O próprio autor da teoria – que deu uma entrevista à imprensa brasileira durante o processo do mensalão, mas que sintomaticamente foi publicada após o seu término – informou que ela não prescindia da prova. A teoria serve apenas para definir a extensão da responsabilidade do acusado, mas é preciso haver provas materiais do ilícito.

Argumentou que a postura do STF no julgamento do mensalão inscreveu-se na tradição dos setores golpistas da elite brasileira, e que as barbaridades ali perpetradas serão estudadas por muitas décadas por estudantes, juristas e historiadores. Emocionado, Pilatti encerrou sua fala com exortações à resistência democrática e dizendo que tendo nascido e crescido sob uma ditadura, “não iria terminar seus dias sob outra”.

Chegou a vez do ex-ministro José Dirceu, o principal personagem do evento. Assim que se levantou, foi extremamente aplaudido e festejado. Dirceu falou numa voz muito calma, reverberando a atmosfera do ambiente, que era, sobretudo, de muita tranquilidade. Não uma calma passiva. Uma calma de quem sabe o que quer, para onde vai, e como agir. Uma calma dura de quem experimentou muitas violências, muitas injustiças, que superou outras tantas, e saber ter conseguido uma primeira grande vitória, que é ter consciência delas, e ter tomado a decisão de lutar.

Dirceu resumiu o histórico de arbitrariedades que se levantaram contra si desde a entrevista de Jefferson à Folha. A partir daquele momento, já estava julgado e condenado pela mídia. Tudo o que se lhe seguiu foi apenas o cumprimento de um roteiro já predeterminado. Ele explicou, porém, que entendeu desde o início que estava em curso uma luta política. E a tentativa de derrotar não apenas o seu partido, não apenas a esquerda, mas um projeto de país fundamentado sobre a soberania popular.

Falava com tanta calma que sua voz às vezes perdia o volume e algumas pessoas gritavam para que falasse um pouco mais alto. Nesse tom, ele explicou que o mais importante, portanto, era praticar a luta política. Porque houve uma derrota. Segundo ele, se a grande mídia não tivesse praticamente monopolizado o debate, agindo como um bloco único, o resultado do julgamento seria outro. Se houvesse um contraponto, o núcleo político seria absolvido. A correlação de forças estava desfavorável.

O ex-ministro observou, no entanto, que o julgamento do mensalão foi a única vitória obtida pela mídia desde 2002. E que as forças progressistas poderão dar a volta por cima, do jeito que aprenderam a fazer, através de uma luta política conduzida com paixão, mas dentro das regras democráticas, com idealismo, mas com pé no chão.

Ele lembrou que, ainda no campo da luta política, os conservadores continuam agindo com extrema astúcia. O julgamento do mensalão foi um golpe, mas há muitos outros em curso. Um dos mais perigosos é a tentativa diária da grande imprensa de esfacelar a base aliada. Todo o tipo de argumento é usado para isso: moralistas, políticos, partidários. As contradições inevitáveis da base são exploradas e maximizadas para implodir as alianças e fazer com que os partidos de esquerda percam seus parceiros e, com isso, se debilitem politica e eleitoralmente. A criminalização da política, por sua vez, é uma tática para manter o Congresso de joelhos, porque sabe que um parlamento seguro de si levaria adiante uma necessária e democrática regulamentação da mídia.

Exortou correligionários a serem mais assertivos e corajosos, a defenderem suas posições, seu partido, a não temerem ninguém, nem ministros do STF, nem Ministério Público, porque este é o sentido da liberdade numa democracia. Todos podem ser criticados, e todos podem exercer o poder de crítica.

Explicou que, nos últimos anos, tem trabalhado como consultor e advogado para pagar sua defesa. Informou que a Receita Federal fez verdadeiras devassas em suas contas e jamais encontrou uma irregularidade. Mas que teria preferido continuar o mandato de deputado federal, para o qual obteve mais de 500 mil votos (foi o segundo deputado mais votado do país) ou trabalhando no governo. Lembrou que os companheiros acusados no processo do mensalão saíram do governo sem qualquer capital acumulado, como Silvio Pereira, que voltou a trabalhar no restaurante da família, ou José Genoíno, que mora na mesma casa há anos, na qual vive modestamente.

(Tão diferente dos milionários do PSDB… Carlos Jereissati, irmão do ex-senador Tasso, vai embolsar US$ 2 bilhões em breve quando vender suas ações da Telemar, a qual comprou com dinheiro do BNDES tucano, sem pôr um tostão do próprio bolso…)

Dirceu disse que não se deixaria abater. Podem jogá-lo em qualquer masmorra, trancá-lo numa solitária; jamais o calarão. O público se emocionou muito com estas últimas palavras, interrompendo-o a todo momento com palmas, sobretudo quando terminou seu discurso. O petista ergueu os braços, e gritou – não foi propriamente um grito, antes um levantar discreto mas firme em sua voz:

- Luta!

Conclusão

No início do post, mencionei o sentimento de serena e dolorida alegria que pairava no ar. Talvez uma outra explicação para esta alegria seja a intuição coletiva de que, naquele momento, com aquele debate, uma importante batalha foi vencida. Em toda parte, eu via senhoras e senhores de meia idade enxugando o rosto, emocionados, satisfeitos. Escutando os papos, percebia-se logo que a maioria das pessoas ali encontrava-se em fase bastante avançada da consciência crítica em relação às artimanhas da mídia. Conhecem os truques lógicos, o denuncismo, os sustos. É a grande e maravilhosa ironia da história, esta senhorita malvada que às vezes também é linda e surpreendente. A mídia, ao mesmo tempo que produz seu exército de zumbis, e pretende assumir o papel de oposição, criou, do outro lado, um exército de gente extremamente astuta, crítica, engajada e atenta. Quanto mais arbitrárias, violentas e salafrárias se tornam as campanhas políticas conduzidas pela mídia, maior e mais qualificado se torna o contingente de brasileiros dispostos a lutar na guerra da comunicação.
 Por Miguel do Rosário, no blog O Cafezinho:
Contribuição de Maria do Pilar

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