3.14.2013

Ensaios de separação

Quem bate boca todos os dias está se preparando para virar a página


Detesto brigar de manhã. Quando se briga à noite, ainda há chance de reconciliação antes do sono. Talvez as pazes possam vir pela manhã, na mesa do café. Mas, quando se briga logo cedo, não tem jeito. A gente sai de casa irritado, às vezes até batendo a porta, e passa o dia com aquela sensação opressiva no peito. Pura infelicidade. Acho que faz um mal danado à saúde. Certamente faz mal para a relação.
Nem todo mundo percebe, mas o pesar que a gente carrega depois de uma briga é uma forma severa de luto. Ele deixa na boca o mesmo gosto da separação. É uma sensação dolorosa de perda, recoberta por uma camada de fúria e indignação. O nosso cérebro viaja cento e cinquenta vezes por segundo entre o mais completo desalento e a mais lúcida justificação. Enquanto isso, os hormônios da tristeza tomam conta. Mesmo que alguma forma de reconciliação nos resgate ao longo do dia, o dano está feito. Fizemos mais um ensaio de separação.

Nem todo mundo se dá conta, mas essas brigas diárias são os caquinhos com que a gente faz um caminho. Num dia você briga, sofre um pouquinho e aguenta. No outro, dói um tantinho mais e, novamente, supera. Multiplique isso por semanas e meses e você tem a perfeita preparação para o desenlace: quem lida com a discórdia todos os dias acaba vivendo em luto. Antecipa o pesar da ruptura, na verdade. É uma espécie de adiantamento. Um belo dia, depois de mais um arranca rabo, percebe que está pronto para virar a página e seguir sozinho. Já sofreu em conta gotas o que tinha de sofrer.
Dizem que há gente que adora discussões e curte relacionamentos que funcionam aos berros. Eu não duvido, mas que tipo de gente? Todo mundo que eu conheço que vivia em conflagração acabou se cansando. Como boxeadores exaustos, jogaram a toalha com a cara ensanguentada. Gente normal. Os que gostam de armar barracos, aqueles que amam trepar como bichos depois de sair aos tapas, pessoas que apenas se sentem vivas quando a adrenalina de uma briga faz o coração bater mais rápido – para esses eu não tenho nada a dizer.
Claro, é impossível viver muito perto de alguém sem brigar de vez em quando. O convívio acumula alguma forma de energia negativa que tem de ser descarregada. Seres humanos não são inteiramente destinados à intimidade. Uma parte de nós se rebela com o excesso do convívio. Então brigamos, para demarcar um espaço psicológico bem claro – eu acabo aqui, você começa aí, não invada! É necessário impor limites e estabelecer fronteiras o tempo inteiro, mas a gente faz isso com suavidade. Em geral, basta um rosnado para que o outro perceba onde tem de parar.
Há também as brigas por princípios.
Se o sujeito chega em casa celebrando a morte do Hugo Chávez e você acha que o presidente da Venezuela era um herói latino-americano – eis um bom motivo para uma discussão. Se você está transtornada com o cara que atropelou o ciclista na Avenida Paulista e jogou o braço dele no rio, enquanto o seu namorado acha que todo ciclista tem mesmo de se danar – eis um excelente motivo para uma briga definitiva. Se você acredita que tem o direito de almoçar com uma amiga e a sua namorada acha que não, arregace as mangas e comece a falar sério com ela. Se ele insiste em conviver com a família ou os amigos dele o tempo todo, e você não se sente feliz com eles, ponha suas cartas na mesa. As brigas por motivos relevantes são como as guerras justas – mais que explicáveis, necessárias.
O que não se pode, o que não se deve, é brigar por besteiras diariamente. Assim os relacionamentos se desgastam. A nossa natural inclinação à ternura vai sendo embotada pela raiva até que o coração paralise. Até que a voz do carinho emudeça. Até que os olhares se percam um do outro. Melhor não. Muito melhor é tomar as mãos delas nas suas e dizer coisas baixinho. Lembre: não fomos feitos para o atrito. Na intimidade, somos afáveis e macios. No nosso interior jazem sentimentos de infindável doçura. A raiva é apenas uma parte do que nos reveste. Vira e mexe temos de exibi-la, mas, lá dentro, nossa real substância é outra. Internamente, somos feitos com o material intangível do sorriso dos bebês. Não queremos brigar e muito menos chorar.
(Ivan Martins)

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