4.07.2013

O que ler depois de "Cinquenta tons de cinza"


|Agora que Cinquenta tons de cinza tornou-se praticamente um livro de família, daqueles que se comenta no almoço de domingo, nós, finalmente, podemos falar sem constrangimentos sobre pornografia literária. 
Os livros eróticos e pornográficos fazem bem à sexualidade. Eles são divertidos. São instrutivos. Eles são pedagógicos e inspiradores. Na verdade, acho a literatura pornográfica libertadora, por sacudir a nossa percepção sobre o sexo e ampliar o horizonte do nosso desejo. Com ela, aprendemos a querer o que antes não atreveríamos – ou respiramos, aliviados, ao encontrar por escrito as nossas próprias fantasias. 
A pornografia escrita solicita e engaja a nossa imaginação. Enquanto os vídeos pornográficos da internet nos deixam babando, mas com a mente anestesiada, o sexo escrito clama pela nossa participação.

Sem a colaboração ativa do leitor, a pornografia escrita não existe. Nós somos obrigados a imaginar a expressão de Anastasia Steel, a heroína relutante de Cinquenta tons de cinza, enquanto ela se aninha ruborizada nos braços de Christian Gray, o Apolo bilionário que a inicia no sadomasoquismo. Ao ler, temos de construir em nossa mente ambientes inteiros que o texto apenas sugere. Metade do trabalho de criação é do escritor, o resto é com o nosso cérebro. Na leitura de um livro pornô somos agentes ativos, enquanto ao ver pornografia em vídeo nos transformamos em consumidores bestificados e passivos. Exceto pelas mãos, claro. 



Como todos nós agora ficamos adultos, me sinto a vontade para recomendar, a quem anda lendo Cinquenta tons de cinza, que leia agora um pornô de verdade – A vida sexual de Catherine M., da escritora francesa Catherine Millet.
Digo que é um pornô de verdade por duas razões. Primeiro, ele contém uma história verdadeira. O livro se baseia nas experiências reais de sua autora, uma respeitável crítica de arte francesa que nas horas vagas se entregava ao sexo com 10, 20 ou 30 homens (ou mulheres) de uma vez, nas ruas ou alcovas de Paris.

Num outro sentido, trata-se de um pornô de verdade porque ele nos tira da zona de conforto. A narrativa minuciosa que Catherine Millet faz de orgias de intelectuais e de encontros sexuais em bairros operários - com homens desconhecidos fazendo fila à porta de uma caminhonete -, atira o leitor a um universo ao mesmo tempo sombrio e excitante, que se parece mais com o filme Crash – Estranhos Prazeres, de David Cronenberg, (trailer) do que com as fantasias comedidas de Cinquenta tons de cinza.

O livro de Millet coloca a nossa mão sobre um fio descascado. Ele nos apresenta o sexo sem pudor e sem afeto, tratado com a naturalidade de quem descreve um ato fisiológico. O choque é imenso, verdadeiramente pornográfico. A experiência é tão extrema que a mera leitura empurra a nossa fronteira pessoal para mais longe, ainda que no terreno da fantasia. Se essa mulher teve coragem de fazer isso tudo, por que eu não posso me permitir ao menos imaginar? 
O filósofo suíço Alain de Botton, autor do livro Para pensar mais sobre sexo, diz que a pornografia na internet é uma droga pesada e destrutiva. Ele defende que sua exibição seja controlada por alguma forma de censura, para evitar que multidões se transformem em zumbis onanistas sentados o dia inteiro diante dos computadores. A tese de Botton é que o cérebro humano não está preparado para lidar com o bombardeio de excitação que a pornografia na internet oferece de graça, 24 horas por dia.

Não sei se Botton está certo quanto a isso, mas eu tenho certeza de que o cérebro humano é capaz de lidar perfeitamente com o erotismo da pornografia literária. A isso temos sido acostumados lentamente. Pelo menos desde o Cântico dos cânticos, escrito para o Rei Salomão 400 anos antes de Cristo, convivemos com o desejo traduzido em palavras. Que estejamos voltando a ele, através de livros como Cinquenta tons de cinza, eu acho tremendamente auspicioso. Só espero que não paremos por aí. De onde saíram Anastasia Steel e Christian Gray, há centenas de personagens interessantes clamando pela nossa atenção. E pelos nossos sentidos.  

(Ivan Martins)

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