11.19.2013

O que Herzog pode ensinar sobre Genoino


Qualquer problema que Genoino possa enfrentar na prisão pode transformar-se numa tragédia política de consequências imprevisíveis


Ao apresentar o pedido de transferência para o regime de prisão domiciliar, o deputado José Genoino coloca uma questão complicada para o presidente do STF, Joaquim Barbosa, que terá a palavra final sobre a decisão.
A solicitação de Genoino, apoiada em vários laudos médicos, deixa nas mãos do Estado toda responsabilidade por qualquer problema que possa lhe acontecer.
 
Se essa situação já fora juridicamente estabelecida no momento em que Genoino se tornou prisioneiro, como ocorre com todo cidadão encarcerado, ficou ainda mais clara depois do pedido de transferência, que serve como um alerta para sua condição médica.
 
Cardiopata grave, segundo médicos que o examinaram, qualquer problema que o deputado possa enfrentar na prisão – como uma arritmia grave, ou mesmo um enfarto – pode transformar-se numa tragédia política de consequências imprevisíveis.
 
A jurisprudência firmada é conhecida. Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog foi massacrado pela tortura no DOI-CODI paulista. Três anos depois, o juiz Márcio José de Moraes assinou uma
sentença que teria um peso importante na democratização do país, responsabilizando a União pela tortura e morte de Herzog.
 
Do ponto de vista da conjuntura política, não há semelhança entre as duas situações. O Brasil vive hoje sob o mais prolongado regime de liberdades de sua história, preparando-se, pela primeira vez desde 1930, para a sexta eleição presidencial resolvida pelo voto direto, em urna. Não há tortura nem execução de adversários políticos.
 
A semelhança se encontra na responsabilidade do Estado. É a mesma, num caso ou em outro.
 
A gravidade do estado de saúde de Genoino é um fato difícil de contestar. No final de julho ele se encontrava entre a vida e a morte quando fez uma  operação de emergência na artéria aorta, que foi parcialmente substituída por um tubo de material sintético.
 
Dois meses depois, quando apresentou o pedido de aposentadoria por invalidez apresentado ao Congresso, Genoino incluiu uma avaliação da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre sua doença:
 
“As doenças da aorta,” mencionou, “são patologias com morbi-mortalidade elevada. Tanto o tratamento clínico como o cirúrgico ainda estão relacionados a elevadas taxas de mortalidade,
 
tornando esse grupo de patologias alvo de extrema importância no tópico das patologias graves.”
 
No laudo que assinou depois de uma consulta de madrugada no presídio da Papuda, o doutor Daniel França registrou riscos provocados pelos problemas de coagulação de Genoino, que
podem produzir trombose ou sangramento.
 
Se você entrar no melhor hospital da cidade, do bairro, do mundo, irá comprovar que a medicina mais avançada não abandonou o estágio de filosofia pré-socrático – quanto mais sabe, mais sabe que nada sabe. Como sabe qualquer paciente que já visitou um cardiologista, em particular, o grau de certeza dos prognósticos para doenças do coração é um dos mais incertos que se conhece.
 
Os casamentos entre medicina e política são antigos mas nem sempre trazem bons frutos, o que recomenda às autoridades  assegurar uma autonomia respeitável aos veredictos médicos.
 
Para ficar na legislação trabalhista, as audiências da Justiça do trabalho estão cheias de casos que envolvem empresas que desprezaram recomendações determinadas por seu
departamento médico. Não é só.
 
Um dos traços mais vergonhosos do regime militar consistiu em subordinar os médicos a seus interesses. Doutores que hoje  escondem a verdadeira identidade dos vizinhos, dos parentes e também de filhos e netos eram chamados a aconselhar torturadores na aplicação de eletro-choques e outros maus tratos.
 
Em sua ausência absoluta de compromissos com a vida humana, doutores alimentavam a ilusão megalomaníaca de que haviam descoberto a fronteira científica entre a vida e a morte, definindo exatamente a hora em que a violência deveria ser interrompida – e quando poderia ser reiniciada. Em sua agonia, que  envolve mistérios profundos até hoje, o ex-deputado e empresário Rubens Paiva teve a companhia de um médico dessa categoria, a quem disse o nome, momentos antes de desaparecer.
 
Não há, obviamente, a mais leve relação entre estes universos, de 1970 e 2013. Nenhuma.
 
O perigo se encontra num eventual namoro com situações de risco. O problema, aqui, não é médico, mas político.
 
Vivemos num país onde a noção demagógica de que a delinquência de toda natureza – inclusive no universo político -- se resolve com violência aberta e punições cada vez mais duras. Essa visão costuma ser estimulada 24 horas por dia por autoridades policiais e políticos conservadores.
 
São pessoas que consideram direitos humanos como sinônimos de mordomia para criminosos e garantias constitucionais como eufemismo para a impunidade. O ibope para ideias selvagens – como pena de morte – é altíssimo nesses círculos. O mesmo vale para a proposta de redução da maioridade penal.
 
Essa visão inclui atitudes de desrespeito pelos direitos mais elementares dos presos da ação penal 470 – e aqui também o caso de Genoino tem semelhança com os piores momentos de nosso passado.
 
“Morra!!!,” escreveram cidadãos com nome e endereço nas redes sociais, quando leram a notícia de que o deputado havia ingressado com o pedido de prisão domiciliar. “Morte aos terroristas,” berravam cidadãos comuns quando equipes do porão militar prendiam militantes da luta armada para encaminhá-los para salas de tortura.
 
O pedido de Genoino certamente irá provocar reações desse tipo.
 
Mas tem a utilidade de mostrar ao Brasil o caminho do Direito e da Democracia, que todos aprendemos a valorizar após um aprendizado longo e difícil.

Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa".

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