2.11.2014

Dava para evitar?


A morte do cineasta Coutinho traz à tona um tema crucial: a assistência aos pacientes esquizofrênicos e suas famílias

Nos últimos anos tenho escutado muitas histórias de pessoas que desapareceram, foram internadas, se machucaram ou morreram porque tiveram agravamento dos sintomas da esquizofrenia. Gente de todas as idades. Esse momento, chamado de surto psicótico, acontece quando a pessoa entra em um estado mental agudo caracterizado por grave desorganização psíquica e fenômenos delirantes, alucinatórios ou ambos, com perda do juízo crítico da realidade.
Também ouvi relatos de especialistas sobre erros na medicação ministrada aos pacientes em clínicas psiquiátricas regiamente pagas, por exemplo, por desatenção na leitura das condutas recomendadas pelos médicos, levando os pacientes a outros surtos. E há a dificuldade das famílias em lidar com as pessoas portadoras da doença que páram de tomar os remédios para modular os sintomas negativos da doença porque dão efeitos colaterais. Se estão se sentindo bem, por que tomar remédio?


O caso dos Coutinho, em que o filho Daniel, diagnosticado com a doença, é o principal suspeito de ter esfaqueado o pai e atacar a mãe (que está internada), coloca a discussão em evidência: que tipo de suporte e orientação devem ter essas famílias? De que forma se poderia prevenir o que ocorreu com os Coutinho? Como ajudar outras pessoas que vivem em circunstâncias semelhantes?
No meu bairro há uma moça que volta e meia se sente perseguida e grita desesperada com os transeuntes. `As vezes alguém chama a polícia. E ela grita que os vizinhos querem matá-la. Outro dia eu disse aos policiais que ela sofria de um problema psiquiátrico e não deveriam assustá-la mais. Mora sozinha. Seus ataques realmente incomodam...mas será que todos nós não temos que saber mais e discutir mais para aprender a lidar com a diversidade e com a doença mental em vez reforçar o preconceito e encurralar ainda mais as famílias que têm pessoas com o problema? Ou é cada um na sua e quem foge dos padrões deve ser "gerenciado" da forma mais discreta possível ou até sair de cena?
Na opinião do psicólogo Gelsel Bastos, de São José dos Campos, “a sociedade quer apenas que as instituições tirem os pacientes de sua vista. Não importa com quais modelos de tratamento”. Para ele, ainda que o modelo manicomial tenha sido substituído em grande parte pelos Centros de Atencão Psicossocial (CAPS), "os maus tratos ainda existem em muitos locais e a falta de informação das famílias e da sociedade são imensas." Bastos diz que a Saúde Mental precisaria funcionar como uma rede para atender o paciente desde as situações de crise até sua reinserção social, mas não há investimento nesse sentido. Em entrevista publicada recentemente por ISTOE online, o psiquiatra Júlio Licínio, especialista de renome internacional que lidera uma cruzada pelo avanço no estudo e nos tratamentos das doenças psiquiátricas, disse que elas continuam negligenciadas, apesar da sua frequência.
Além da dificuldade de acesso ao tratamento – filas de espera longas na rede pública, por exemplo --, há o empecilho do custo. Comentando um post sobre o assunto, a jornalista Vanessa Haddad, de São Paulo, alerta para o fato de que famílias pobres ou de classe média não têm condições financeiras de arcar com um bom tratamento para doenças mentais. “Um tratamento de qualidade envolve medicamentos caros, nem sempre disponíveis na rede pública.” Apenas em São Paulo, por exemplo, é possível obter gratuitamente o mais recente remédio lançado para controlar sintomas. Ela prossegue: “Também é difícil encontrar um psiquiatra de convênio que acerte. O tempo da consulta é curto, o que faz falta principalmente no momento do diagnóstico.” Isso sem falar na necessidade de terapia com psiquiatra ou psicólogo. “Recomenda-se muitas vezes um mínimo de três a quarto vezes por semana. E quem dinheiro para isso? Os convênios só cobrem 12 sessões por ano.”
As eleições vêm aí e a saúde está na pauta. Que a tragédia de Coutinho capture a atenção para o drama das famílias anônimas que vivem situações semelhantes. Com a precisão, força e dignidade com que o cineasta jogou luz sobre aspectos inusitados da vida de pessoas comuns em filmes como Edifício Master e As Canções. É o momento de aprofundar esse debate
Por Mônica Tarantino 
ISTOÉ

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