6.29.2014

A batalha do glúten

Milhares de pessoas em todo o mundo estão tirando o nutriente da alimentação na esperança de emagrecer e ter mais saúde. Mas a dieta causa enorme controvérsia na comunidade científica

Cilene Pereira, Mariana Brugger e Mônica Tarantino*
Basta um teste rápido para identificar a nova febre mundial no que diz respeito a regimes de emagrecimento. Uma conversa no trabalho, com os amigos, na academia e com certeza você ouvirá que alguém está fazendo, fez ou pretende fazer a dieta do glúten. Retirar o nutriente do cardápio tornou-se a solução mais propagada do momento para perder peso e ter mais saúde. A recomendação contagiou o Brasil, os Estados Unidos, a Europa. Os números de um mercado em franca expansão confirmam a crescente popularidade desse movimento. Nos Estados Unidos, por exemplo, a previsão é de que o consumo de produtos sem glúten salte de US$ 2,6 bilhões, em 2010, para US$ 5 bilhões em 2015. No Brasil, não há estimativas exatas, mas proliferam pelo País restaurantes com opções glúten-free no menu, e mercados, como o Santa Luzia, em São Paulo, reservam prateleiras para os artigos sem a substância. A reboque dessa onda está a exclusão da lactose, o açúcar do leite (leia mais sobre o assunto à pág.70).
GLUTEN-01-IE.jpg "Como tenho prazer em comer, sofri com a retirada do glúten. Mas me fez
muito bem. Perdi 17 quilos e regularizei meus níveis de colesterol"
Rubens Araújo, empresário, de São Paulo
O glúten é uma proteína existente no interior dos grãos. Nas plantas, cumpre a função de guardar nitrogênio e carbono para a germinação das sementes. Não tem calorias ou função importante no organismo. Sua vantagem é ter se tornado imprescindível na panificação. Por suas características, acrescenta viscosidade e elasticidade às massas e pães.
Deixar de consumi-lo significa riscar do prato sua principal fonte, o trigo, e outros cereais em que também está presente em menor quantidade, como a cevada, o centeio, o malte e a aveia. Em substituição, a orientação é usar outras fontes de carboidratos, como a farinha de mandioca, arroz e tubérculos como o inhame.
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EFEITOS COLATERAIS
Os defensores da exclusão argumentam, em primeiro lugar, que a troca elimina eventuais desconfortos abdominais provocados pela substância. “O glúten é uma proteína grande e de difícil digestão. Ele altera a bioquímica do intestino, pode levar à diarreia e constipação e prejudica a absorção de nutrientes”, diz a farmacêutica e nutricionista funcional Lucyanna Kalluf, do Natunutry Núcleo de Nutrição e Clínica Personalizada, em São Paulo.
A endocrinologista Júlia Gouvea, de São Paulo, também recomenda a retirada do glúten da alimentação. “Pesquisas provam que o nível de inflamação do organismo – maior nos obesos e se eleva por reação ao glúten e à lactose – aumenta a predisposição à manifestação de problemas cardiovasculares e de doenças autoimunes, entre elas a diabetes tipo 1”, diz. Tirar o nutriente, para ambas as especialistas, equivale a remover um fardo do metabolismo, que passa a trabalhar mais rapidamente.
GLUTEN-02-IE.jpg ESCOLHAS
Renata (acima) é celíaca e não pode consumir a proteína.
Seu namorado, Gustavo, procura ingerir alimentos sem a
substância, mas sem radicalismo. A médica Júlia (abaixo)
afirma que glúten e lactose causam inflamação
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Os relatos de quem aderiu à vida sem glúten corroboram essas afirmações. O empresário de moda Rubens Araújo, por exemplo, começou uma dieta sem glúten e sem lactose após um check-up revelar colesterol elevado e alto risco de diabetes. “Estranhei a retirada do glúten porque adoro comer. Mas a mudança regularizou meus índices de risco”, diz. Ele emagreceu mais de 17 quilos em seis meses. “Os exames de Araújo revelaram intolerância ao glúten e à lactose. Retirar esses alimentos restaurou o equilíbrio no intestino e melhorou seu metabolismo”, diz a nutricionista Lucyanna.
A ciência concorda que o glúten não é uma substância completamente inofensiva. Ele não pode ser consumido de forma alguma por portadores de doença celíaca. Nesses indivíduos, a ingestão do composto ocasiona uma reação autoimune que com o tempo produz danos na mucosa do intestino delgado, causa má absorção de nutrientes e pode levar a uma grande variedade de sintomas, como diarreia, distensão abdominal e perda de peso.
Um dos argumentos que embalam a onda glúten-free é a afirmação de que há indivíduos que não teriam a doença celíaca ou alergia ao trigo (neste caso, o corpo produz anticorpos específicos contra o glúten), mas uma sensibilidade à proteína. “Sensibilidade ao glúten é uma condição mais recentemente identificada que imita muitos dos sintomas de doença celíaca, mas é menos grave e não causa dano intestinal. Temos muito a aprender sobre ela”, disse à ISTOÉ o cientista Alessio Fasano, do Centro de Pesquisa Celíaca e Tratamento do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos. “Meus estudos revelaram uma nítida diferença entre o mecanismo molecular da doença celíaca e o da sensibilidade ao glúten. Agora, trabalho para achar uma substância que sirva de marcador para diagnosticar a sensibilidade ao glúten”, afirmou. Fasano e a escritora científica Susie Flaherty acabam de lançar o livro “Gluten Freedom”, ainda sem tradução. Para ele, quem tem sensibilidade à proteína de fato se beneficia com a sua retirada.
GLUTEN-04-IE.jpg VARIEDADE
Patrícia não entrou na onda. Fez reeducação
alimentar e emagreceu comendo de tudo
SERVE PARA QUEM?
Aqui, porém, começam os problemas apontados pelos críticos dessa estratégia. “As únicas pessoas para quem a retirada do glúten é recomendada são os celíacos”, afirma a endocrinologista Cintia Cercato, do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “E eles somam apenas 1% da população”, complementa.
Há também uma grande controvérsia no meio científico em relação à tal sensibilidade ao glúten. Recentemente, Peter Gibson, da Monash University, o mesmo pesquisador que em 2011 publicou artigo sobre o assunto, surpreendeu seus pares com a divulgação do resultado de outras duas pesquisas, dessa vez feitas com mais rigor, mostrando que a sensibilidade existe, mas não é tão comum, e que, na verdade, o responsável pelos sintomas de desconforto não seria o glúten, mas um tipo específico de carboidrato conhecido como FODMAPs. “Pessoas sem doença celíaca, mas com desconforto abdominal, podem se beneficiar com a redução do consumo de alimentos com trigo, mas isso está sendo atribuído incorretamente ao glúten”, afirmou o cientista à ISTOÉ. “Nossos estudos não identificaram qualquer evidência de que a proteína seja a responsável pelos sintomas. As 37 pessoas estudadas melhoraram quando foi diminuída a quantidade de FODMAPs. Isso não significa que todos os indivíduos que pensam ser sensíveis ao glúten não o sejam, mas isso é muito incomum, para dizer o mínimo”, disse à ISTOÉ. O cientista Alessio Fasano contesta. “A intolerância alimentar, geralmente envolvendo o açúcar dos alimentos e os FODMAPS, é muito diferente de sensibilidade ao glúten. É como comparar maçãs e laranjas”, diz. “No entanto, pode ser que eles agravem o quadro clínico da sensibilidade ao glúten”, afirma.
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Outra ponderação contra a dieta é que ela priva o organismo de uma boa parte de carboidratos, fonte importante de energia. Sem ela, o corpo pode acabar recorrendo às fontes da gordura e da proteína para obter o combustível de que necessita. “Quebrar a proteína da gordura, por exemplo, para transformá-la em energia tem um custo alto para o organismo”, afirma o pediatra Mauro Fisberg, de São Paulo, também especialista em nutrição. Há um gasto metabólico desnecessário aplicado para essa função.
CONTA DE CALORIAS
Os críticos também argumentam que o emagrecimento resultante da dieta advém da redução do consumo de alimentos calóricos nos quais há a presença do glúten, como os pães e as pizzas. “Muitas vezes essas são as fontes de vulnerabilidade para que a pessoa engorde”, diz a nutricionista Beatriz Rique, da Clínica Ivo Pitanguy, do Rio de Janeiro. A especialista lembra a história de uma paciente que entrou na onda glúten-free e acabou engordando porque passou a comer tanto quanto antes, mas dessa vez produtos sem o ingrediente. “E o pão sem glúten tem calorias semelhantes aos integrais e francês”, complementa o médico pós-graduado em nutrologia João Curvo, do Rio de Janeiro. “A tapioca, muito usada para substituir o pão, não emagrece”, diz.
A administradora de empresas carioca Patrícia Dias, 32 anos, preferiu seguir essa linha de pensamento a aderir à moda sem glúten da qual muitas de suas amigas viraram seguidoras. “Perguntei à minha nutricionista se valia a pena tirá-lo”, lembra. “Ela me disse que se não tivesse doença celíaca ou intolerância não era o caso de fazer isso.” Com uma dieta personalizada, ela emagreceu. “E comendo de tudo”, ressalta.
GLUTEN-05-IE.jpg CRÍTICA
O especialista Fisberg diz que a retirada do glúten e da lactose da alimentação
sem necessidade pode causar prejuízos ao organismo
Diante de tanta controvérsia, há quem prefira ficar no meio-termo. O publicitário Gustavo Negrini, de São Paulo, que trabalha com marketing na área da nutrição, decidiu evitar o glúten há cerca de cinco anos, quando começou a ler a respeito para organizar um evento no setor, a feira Gluten Free, que ocorrerá em agosto. “Não tenho problema algum com o glúten, mas sinto a digestão mais leve e fico mais disposto quando escolho alimentos sem o nutriente”, afirma. Hoje, Negrini diz que só não resiste à tentação de estar diante de um pão caseiro assado na hora, como ocorreu no final de semana, em uma pousada em São Carlos do Pinhal (SP). Sua namorada, a chef Renata Macena, colabora para mantê-lo afastado do nutriente. Celíaca, ela cria pães e doces sem glúten. “Dá para viver muito bem. É só aprender a escolher.”
A onda sem lactose
Na esteira da moda glúten-free surgiu também a dieta sem lactose, o açúcar do leite. Portanto, a recomendação é não consumir leite, ou, se beber, ingerir os produtos que não contenham a substância. E milhares de pessoas no mundo estão fazendo isso. O raciocínio é parecido com o aplicado para justificar a retirada do glúten da alimentação. A lactose também provocaria intolerância em muita gente, sendo responsável por sintomas desconfortáveis, como diarreia, inchaço e dor abdominal.
Há de fato uma condição de saúde caracterizada pela intolerância à lactose. O composto é metabolizado no organismo pela enzima lactase. O problema é que com o passar dos anos sua produção diminui, o que, consequentemente, reduz a quebra da lactose. Esse processo pode resultar no surgimento dos sintomas. Além disso, há algumas circunstâncias transitórias, como intoxicações alimentares, e a presença de enfermidades como a doença de Crohn que também prejudicam a fabricação da enzima, facilitando o acúmulo de lactose no organismo.
A primeira crítica a esse modismo é que a intolerância ao composto estaria sendo superdiagnosticada, embora existam testes que forneçam uma resposta concreta. E, por conta disso, muita gente estaria desnecessariamente prescindindo de um alimento essencial para a saúde. “O leite tem alto valor nutricional”, explica o pediatra Mauro Fisberg. Sua proteína participa de processos do crescimento, da síntese de outras proteínas e hormônios e também alguns relacionados à imunidade. “Além disso, é a melhor fonte de cálcio, ajudando no fortalecimento ósseo”, diz a endocrinologista Cintia Cercato. Na opinião dos especialistas contrários à exclusão da lactose, a suplementação de cálcio feita por meio de comprimidos não apresenta os mesmos benefícios proporcionados pela ingestão do mineral por meio da alimentação.
Eles ponderam ainda que, também a exemplo do glúten, as opções sem lactose costumam ser mais caras, o que pode afastar o indivíduo do consumo. No entanto, é importante ressaltar que os derivados lácteos possuem os mesmos benefícios do leite, mas com menor teor de lactose (o açúcar acaba sendo quebrado durante o processo de fabricação). Por isso, podem servir de boa alternativa para quem não consome o leite em sua forma natural.
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Foto: Kelsen Fernandes/Agência Istoé, Airam asil, Calebe Simões – Agência Istoé, Bruno Poppe; Gabriel Chirastelli
* Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br), Mariana Brugger (marianabrugger@istoe.com.br) e Mônica Tarantino (monica@istoe.com.br)

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