6.09.2014

Espinosa e a Crítica ao Livre Arbítrio


CRÍTICA À NOÇÃO DE LIBERDADE DA VONTADE OU LIVRE ARBÍTRIO NA FILOSOFIA DE ESPINOSA
“A vontade não pode ser chamada causa livre, mas unicamente necessária” [1]
A questão da liberdade representa um tema clássico da filosofia, sendo um conceito que coleciona muitas polêmicas, pois envolve a clássica oposição entre necessidade e contingência. Baruch Espinosa, sendo um filósofo racionalista e determinista absoluto, recusa uma ideia de vontade livre, alegando que a faculdade de livre arbítrio não passa de uma ilusão da imaginação. Sendo característica de nossa consciência imediata, a imaginação apenas representaria um primeiro gênero de conhecimento, constituindo, assim, fonte de falsidade. Assim, “a crença no livre arbítrio é, aos olhos de Espinosa, o preconceito primordial, fonte de todos os outros.” [2]
O presente trabalho pretende explicitar a crítica à noção de liberdade da vontade (ou livre arbítrio) na filosofia de Espinosa, tomando como base sua obra mais importante, que é a Ética. Nela Espinosa segue uma trajetória que vai da metafísica e da epistemologia à ética, nos trazendo uma crítica à vontade livre, tradicionalmente segundo a qual o sujeito teria pleno poder de escolha entre o “sim” e o “não”, e também uma nova concepção de liberdade aos moldes de sua filosofia determinista. Para que consigamos compreender sua argumentação, faz-se importante, em linhas gerais, a exposição de alguns pontos, para que assim tenhamos base para defender sua crítica e, sem contradição alguma, poder chamá-lo de filósofo da liberdade e designar sua filosofia como uma filosofia de (e para) homens livres.
Em primeiro lugar, Espinosa considera que o homem é submetido às leis necessárias que regem a Natureza, não existindo, assim, a possibilidade de contingência, pois, seguindo-se o princípio de causalidade, atestaríamos que para tudo há uma causa e esta, por sua vez, encontra-se na própria Natureza, e não em um plano transcendente. A identificação entre Deus e a Natureza é capital para a construção argumentativa que visa criticar o livre arbítrio:
A identificação entre Deus e a Natureza, assinalada na citação do Tratado e demonstrada na primeira parte da Ética, por si só já indica claramente que o Deus de Espinosa em nada se confunde com o Deus transcendente, pessoal e criador da tradição judaico-cristã. Seu Deus é imanente à Natureza, e o conhecimento de nossa união com ele nada mais é do que o conhecimento intelectual de nós mesmos como partes da Natureza, partes integralmente submetidas, como todas as outras, às leis causais necessárias que regem o comportamento das coisas naturais. Neste espaço teórico dominado pelas ideias de imanência e necessidade, a exigência racionalista de inteligibilidade integral do real será colocada a serviço da intuição fundamental da unidade da Natureza e levada às últimas consequências. [3]
Uma vez que o homem é submetido às leis da Natureza, que é a totalidade e identifica-se com Deus – sendo a única substância e causa de si mesma -, a vontade, que segundo Espinosa é a essência do homem, não representa algo transcendente, mas está submetida às mesmas leis naturais as quais todos os outros fenômenos também estão. Para Espinosa tudo é causa de alguma coisa: com a vontade isso não poderia ser diferente. Torna-se importante destacar o conceito de conatus, termo que significa esforço em latim, para compreender a determinação, que necessariamente engloba a vontade, pois “o interesse do corpo e da alma é a existência e tudo quanto contribua para mantê-la.” [4]
Segundo Espinosa, “o esforço pelo qual cada coisa se esforça por perseverar em seu ser nada mais é do que a sua essência atual” [5], sendo que, a partir das afecções que a coisa sofreu, ela tende sempre a buscar aquilo que a conserve ou aumente a sua capacidade de afetar outros corpos. O conatus, portanto, é uma potência natural de autoconservação, “com a peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de possuir o esforço de perseveração na existência” [6]. Ao possuirmos a ilusão de que, como resultado de nossa absoluta e livre vontade, podemos escolher entre o “sim” e o “não”, nós estamos ignorando o fato de que tal estado de passividade e dúvida é somente a oscilação entre duas vontades contrárias, uma limitando a outra, e que ambas tendem a perseverar em seu ser, sem nenhuma contradição interna. É a partir desses aspectos apresentados que podemos enxergar a crítica de Espinosa ao livre arbítrio, pois, em última análise, ao ter a consciência de que possuímos um apetite - constituindo, assim, o que chamamos de desejo - não significa que somos os autores dos mesmos: apenas seguimos uma série de determinações causais, sem conhecê-las completamente. E, assim, acreditamos desejar livremente. Entretanto, ter a consciência do apetite não muda em nada a sua natureza, sendo que esse somente será superado por um apetite mais poderoso. Da mesma forma, ter uma ideia já é afirmá-la por si só: a afirmação de sua veracidade será abandonada em prol da afirmação de outra mais clara e distinta, mas não devido a um suposto livre arbítrio.
Seguindo o conceito de conatus “os propósitos e intenções que realizamos, passiva ou ativamente, não são escolhidos por nossa vontade, mas exprimem a causalidade eficiente de nosso apetite e de nosso desejo” [7]. Isso significa que a vontade livre é uma ilusão, uma vez que nossos apetites e desejos são regidos pelo princípio de causalidade, assim como qualquer outro evento natural. Outra razão para que tal ilusão ganhe uma força descomunal é a que se refere ao fato de que nos focamos nos efeitos e ignoramos as causas: diz Espinosa que todos nós nascemos ignorantes das causas das coisas e que buscamos o útil, com a consciência dessa busca. Entretanto, pela ignorância das causas que os determinam a desejar algo, os homens se consideram livres, pensando que buscam uma coisa por a considerarem boa; e não o contrário. Na verdade, para Espinosa, os juízos de valor que formulamos, e, consequentemente, a ideia confusa de que buscamos algo pela influência desses juízos, designam o nosso conatus, ou seja, a nossa própria essência - que é desejo e apetite -, muito mais do que imaginamos. “Assim, um desejo cujo múltiplo condicionamento causal é ignorado é apreendido como um desejo incondicionado, o sujeito considerando-se como sua causa primeira e única.” [8]
Espinosa nos traz, porém, uma nova visão de liberdade, calcada em raízes deterministas (e não fatalistas), onde a determinação do sujeito deriva-se a partir de sua essência, ou seja: o sujeito ativo se autodetermina, regido pela razão e pelo intelecto, e age sem constrangimento. Voltando à crítica de Espinosa, concluiremos nossa breve análise com uma comparação entre a pedra e o homem:
Se a pedra lançada tivesse consciência do seu movimento, e da sua tendência a perseverar no movimento, julgar-se-ia livre, na medida em que ignoraria o impulso que produziu o seu movimento, que determinou de uma certa maneira a sua faculdade de estar em movimento ou em repouso. Do mesmo modo, aquele que na cólera, na embriaguez ou em sonho, crê agir livremente, é porque ignora as forças que o impelem contra a sua vontade. [9]
BIBLIOGRAFIA:
MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982.
GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos).
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

[1] Ética, Livro I, proposição 32.
[2] MOREAU, Joseph. Espinosa e o espinosismo. Tradução de Lurdes Jacob e Jorge Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1982. p. 46.
[3] GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 8.
[4] CHAUÍ, Marilena de Souza. Espinosa: uma filosofia da liberdade. São Paulo: Moderna, 1995. (coleção logos). p. 63
[5] Ética, Livro III, proposição 7.
[6] CHAUÍ, Marilena de Souza. op. Cit.
[7] Ibid. p. 64
[8] GLEIZER, Marcos André. Espinosa & a afetividade humana. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 9.
[9] MOREAU, Joseph. op. Cit.

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