Em 2004, durante a produção de um documentário sobre o bicampeonato sul-americano do São Paulo, conversei detidamente com um importante ex-membro da comissão técnica de Telê Santana. Questionado sobre o relacionamento próximo entre o então presidente do São Paulo, José Eduardo Mesquita Pimenta, e o então presidente da Conmebol, Nicolás Leoz, ele foi claro. Lembrou experiências pregressas de clubes brasileiros na Libertadores e disse: “Era preciso ter relacionamento próximo, que servia basicamente para impedir que o time fosse roubado quando jogava fora de casa”.
Sorteio Libertadores
A cobiçada taça: aparentemente, vale até roubar para conquistá-la (Foto: Reprodução/Conmebol)
Aquela frase está hoje mais viva do que nunca, graças aos áudios revelados pela emissora argentina América, envolvendo o falecido ex-presidente da Associação de Futebol Argentino Julio Grondona. Nas escutas, Grondona deixa claro que o Independiente ganhou roubado do Santos na semifinal de 1964 e indica que o árbitro Carlos Amarilla beneficiou intencionalmente o Boca Juniors no escandaloso jogo de volta das oitavas de final contra o Corinthians, em 2013.
As gravações chocam, mas ao mesmo tempo trazem à tona algo que permanece no subconsciente dos mais atentos observadores do futebol sul-americano: isso não é exatamente uma novidade.
Em 2005, passou em brancas nuvens um caso escandaloso na mesma Libertadores. Nas semifinais, o São Paulo ganhou os dois jogos contra o River Plate, mas o clube foi descaradamente prejudicado pelas arbitragens. No Morumbi, o uruguaio Gustavo Méndez inverteu faltas e laterais, irritou e intimidou os atletas são-paulinos e não marcou dois pênaltis para o clube brasileiro, uma atuação que fez o São Paulo enviar uma carta de protesto à Conmebol. Em Buenos Aires, o chileno Rubén Selman anulou um gol legal de Mineiro esurpreendeu Javier Mascherano ao não expulsá-lo, quando o volante já se dirigia para fora do gramado após uma duríssima falta. Contra Selman, nunca surgiu uma suspeita formal. Contra Méndez, sim. O empresário Jorge Chijani confessou ter entregue US$ 20 mil ao árbitro, seu ex-sócio, em nome do River.
Outros casos parecidos tiveram ainda menos repercussão. Quem esquece do que fez Ubaldo Aquino com o Palmeiras no primeiro jogo das semifinais de 2001, contra o Boca? O mesmo Ubaldo Aquino que, quatro anos antes, tirou o título da Supercopa do São Paulo para entregar ao River Plate.

Esses casos são apenas os mais explícitos, mas nem de longe os únicos. É provavelmente impossível lembrar de uma edição da Libertadores sem erros graves de arbitragem. Muitos dos jogos do torneio ainda são disputados de forma obscura, longe de holofotes e do escrutínio da imprensa. Exatamente o mesmo ambiente pouco transparente onde vicejam casos de corrupção no futebol pelo mundo afora, incluída a Europa e sua Liga dos Campeões.
A triste impressão passada no caso da Libertadores é de que, para levantar a tão cobiçada taça, o clube precisa ser tão forte politicamente quanto bom esportivamente. Quem garante que o contestado pênalti sobre Macedo, que ajudou o São Paulo a bater o Newell’s Old Boys em 1992, não tenha sido fruto do poder político de Pimenta? E quem garante que a não marcação de um pênalti contra o Vélez Sarsfield em 1994, no mesmo Morumbi, que tirou o tricampeonato do São Paulo, não tenha sido fruto da diluição do poder político são-paulino na Conmebol?

Como escreveu Fabio Chiorino, as revelações enterram a credibilidade da Conmebol e as soluções para esse quadro são, hoje, fantasiosas. Em parte, porque torcedores, jornalistas e profissionais do esporte precisam fazer perguntas cujas respostas podem ser dolorosas demais. Será que o título do meu clube, que eu tanto comemorei, foi comprado? As reportagens e análises feitas por mim abarcam apenas a face visível de um jogo de cartas marcadas? Seria eu um peão em um grande esquema de corrupção?
O torcedor gosta de tratar o futebol como religião e a situação atual é um teste de convicção. Sem um revolução que amplie a transparência na Libertadores, na Conmebol e no futebol sul-americano como um todo, torcer e trabalhar com o esporte será uma profissão fé: podemos acreditar na dignidade dos resultados, mas não podemos comprová-la. A investigação do FBI mostrou que os “padres” e “pastores” da religião futebol são corruptos. Com isso, até podemos lidar. Com a possibilidade de os resultados serem manipulados, é bem mais complicado. A aparente roubalheira generalizada indica que o futebol não é de verdade. Indica que deus não existe. Para muitos, isso é mais do que é possível aguentar.
* José Antonio Lima é editor-executivo do site de CartaCapital. Tem como maior patrimônio os álbuns completos das Copas do Mundo de 1990 a 2014.